sábado, 13 de junho de 2020

O resto é preguiça e covardia - Clóvis de Barros Filho

Fundamentação da Metafísica dos Costumes Immanuel Kant

Tradução de Antônio Pinto de Carvalho, Companhia Editorial Nacional

Prefácio


ANTIGA filosofia grega repartia-se em três ciências: a Física, Ética e a Lógica.. Esta divisão está inteiramente de acordo com a natureza das coisas, nem temos que introduzir-lhe qualquer espécie de aperfeiçoamento, a não ser acrescentar o princípio em que ela se baseia, para que desse modo possamos por um lado, possuir a certeza de ela ser completa e, por outra lado, determinar com exatidão as subdivisões necessária. Todo conhecimento racional é ou material e refere-se a qualquer objeto, ou formal e ocupa-se exclusivamente com a forma do entendimento e da razão, um e outro em si mesmo considerados, e com as regras universais do pensamento em geral, sem distinção de objetos.

A filosofia formal denomina-se LÓGICA, mas a filosofia material, que trata de objetos determinados e das leis a que eles estão sujeitos, divide-se, por sua vez, em duas, visto estas leis serem ou leis da natureza ou leis da liberdade. A ciência das primeiras chama-se FÍSICA; a das segundas, ÉTICA. Aquela dá -se também o nome de Filosofia da natureza ou Filosofia natural; a esta, o de Filosofia dos costumes.A filosofia formal denomina-se LÓGICA, mas a filosofia material, que trata de objetos determinados e das leis a que eles estão sujeitos, divide-se, por sua vez, em duas, visto estas leis serem ou leis da natureza ou leis da liberdade. A ciência das primeiras chama-se FÍSICA; a das segundas, ÉTICA

A Lógica não pode comportar parte empírica, ou seja, parte na qual as leis universais e. necessárias do pensamento estribem em princípios tomados da experiência; de contrário, não seria lógica, isto é, cânone do entendimento e da razão, válido para todo pensamento e capaz de ser demonstrado. Ao invés, tanto a Filosofia natural como a Filosofia moral podem, cada uma, possuir uma parte empírica, pois devem aplicar suas leis, aquela à natureza como o objeto da experiência, e esta à vontade humana enquanto afetada pela natureza: leis, no primeiro, caso, em conformidade com as quais tudo acontece; leis, no segundo caso, de acordo com as quais tudo deve (388) acontecer, tomando todavia em consideração as condições, mercê das quais muitas vezes não acontece o que deveria acontecer.

Pode-se denominar empírica toda filosofia que se apóia em princípios da experiência; e pura, a que deriva suas doutrinas exclusivamente de princípios a priori. Esta, quando simplesmente formal, chama-se Lógica; mas, se for circunscrita a determinados objetos do entendimento, recebe o nome de Metafísica.

Deste modo, surge a idéia de uma dupla metafísica: uma Metafísica da natureza e uma Metafísica dos costumes. A Física terá pois, além de sua parte empírica, uma parte racional . Outro tanto sucede com a Ética; embora, aqui, a parte empírica possa denominar-se particularmente Antropologia prática, e a parte racional receber o nome de Moral.

Todas as indústrias, mesteres e artes lucraram com a divisão do trabalho. Devido a ela, não é um só que faz todas as coisas, mas cada qual se circunscreve àquela tarefa peculiar que, por seu modo de execução, se distingue sensivelmente das demais, a fim de poder cumpri-la com o máximo de perfeição e de facilidade possível. Onde os trabalhos não são assim divididos e discriminados, e cada artista tem de realizar tudo por si, as indústrias permanecem numa fase de grande barbárie. Ora seria, por certo, questão digna de ser examinada, perguntar se a filosofia pura não exige em todas as suas partes uni especialista que se lhe dedique exclusivamente, e se, para o conjunto desta indústria que é a ciência, não seria preferível que os que estão habituados a apresentar, conforme ao gosto do público, o empírico imiscuído com o racional, combinado em toda a sorte de proporções que eles próprios desconhecem, que a si próprios se qualificam de autênticos pensadores ao mesmo tempo que apodam de visionários os que se ocupam da parte puramente racional, se não seria preferível, digo, que esses tais fossem advertidos a que não se incumbissem simultaneamente de duas tarefas que devem ser desempenhadas de maneira inteiramente diferente, cada uma das quais reclama sem dúvida talento particular, e cuja reunião numa só pessoa conduz fatalmente a produzir obra imperfeita. Limito-me, entanto, aqui, a perguntar se a natureza da ciência não exige que se separe sempre com sumo cuidado a parte empírica da parte racional, que se faça preceder a Física propriamente dita (empírica) de uma Metafísica da natureza, e a Antropologia prática de uma Metafísica dos costumes, as quais Metafísicas deveriam ser cuidadosamente expurgadas de todo elemento (389) empírico, com o intuito de saber tudo o que a razão pura pode fazer em ambos os casos e em que mananciais ela haure esta sua doutrinação a priori, quer semelhante tarefa seja empreendida por todos os moralistas (que não têm conto), quer somente por alguns que para tal se sintam especialmente chamados. Como aqui não tenho em vista senão propriamente a filosofia moral, limito a estes termos a questão proposta: não seria de suma necessidade elaborar, de vez, uma Filosofia moral. pura completamente expurgada de tudo quanto é empírico e pertence à Antropologia? Que tal filosofia deva existir resulta manifestamente da idéia comum do dever e das leis morais. Deve-se concordar que uma lei, para possuir valor moral, isto é, para fundamentar uma obrigação, precisa de implicar em si uma absoluta necessidade; requer, além disso, que o mandamento: "Não deves mentir" não seja válido somente para os homens, deixando a outros seres racionais a faculdade de não lhe ligarem importância. O mesmo se diga das restantes morais propriamente ditas. Por conseguinte, o princípio da obrigação não deve ser aqui buscado na natureza do homem, nem nas circunstâncias em que ele se encontra situado no mundo, mas a priori. só nos conceitos da razão pura; e qualquer outra prescrição, que estribe nos princípios da simples experiência, mesmo que sob certos aspectos fosse prescrição universal, por pouco que se apóie em razões empíricas, nem que seja por um motivo apenas, pode ser denominada regra prática, nunca porém lei moral.

Pelo que, em todo conhecimento prático não só as leis morais, juntamente com seus princípios, se distinguem essencialmente de tudo o que contém algum elemento empírico, como também toda filosofia moral se apóia inteiramente em sua parte pura, e, aplicada ao homem, não deduz coisa alguma do conhecimento do que este é (Antropologia), senão que lhe confere, na medida em que ele é ser racional, leis a priori. Sem dúvida tais leis exigem uma dificuldade de julgar aguçada pela experiência capaz de, em parte, discernir em que casos elas são aplicáveis e, em parte, procurar-lhes acesso à vontade humana e influência para a prática; porque o homem, sujeito como se encontra a tantas inclinações, possui decerto capacidade para conceber a idéia de uma razão pura prática, mas não pode assim com facilidade Tornar essa idéia eficaz in concreto em seu procedimentoUma Metafísica dos costumes é pois rigorosamente necessária, não só por motivo de necessidade da especulação, a fim de indagar a origem dos princípios práticos que existem a priori em nossa razão, mas também porque a própria moralidade está sujeita a toda a espécie de perversões, enquanto carecer deste fio condutor e desta norma suprema de sua exata apreciação. Com efeito, para que uma ação seja moralmente boa, não basta que seja conforme com a lei moral; é preciso, além disso, que seja praticada por causa da mesma lei moral; de contrário, aquela conformidade e apenas muito acidental e muito incerta, visto como o princípio estranho à moral produzirá, sem dúvida, de quando em quando, ações conformes com a lei, mas muitas vezes também ações que lhe são contrárias - Ora, a lei moral em sua pureza e genuinidade (e justamente é isto o que mais importa na prática) não deve ser buscada senão numa Filosofia pura; donde, a necessidade de esta (a Metafísica) vir em primeiro lugar, pois sem ela não pode haver filosofia moral. Nem a filosofia, que confunde princípios puros com princípios práticos merece o nome de filosofia (pois esta distingue-se do conhecimento racional comum, precisamente por expor numa ciência à parte o que este conhecimento comum apreende apenas de modo confuso); merece menos ainda o nome de filosofia moral, porque justamente devido a tal confusão prejudica a pureza da moralidade e vai de encontro a seu próprio fim.

Não se pense todavia que o que se requer aqui se encontre já na propedêutica que o ilustre WOLFF antepõe à sua filosofia moral, a saber na obra a que deu o título de Filosofia prática universal, e que, por conseguinte, não há campo inteiramente novo que explorar. Precisamente porque essa propedêutica devia ser uma filosofia prática universal, considerou ela, não uma vontade de qualquer espécie particular, como seria, por exemplo, uma vontade determinada, não por motivos empíricos, mas só por princípios a priori, e que pudesse ser denominada vontade pura, mas o querer em geral, com todas as ações e condições que lhe convém dentro deste significado geral; distingue-se pois da Metafísica dos costumes, do mesmo modo que a Lógica geral se distingue da Filosofia transcendental: a Lógica geral expõe as operações e regras do pensamento em geral, ao passo que a Filosofia transcendental expõe unicamente as operações e regras particulares do pensamento puro, ou seja, do pensamento, por meio do qual os objetos são conhecidos inteiramente a priori. É que a Metafísica dos costumes deve indagar a idéia e os princípios de uma vontade pura possível, e não as ações e condições do humano querer em geral, as quais, em sua maioria, são tomadas da Psicologia. O fato de na Filosofia prática geral se falar igualmente (391) (embora sem razão) de leis morais e de dever não constitui objeção contra o que afirmo. Com efeito, os autores dessa ciência permanecem fiéis, neste ponto, à idéia que dela formam; não distinguem, entre os princípios de determinação, aqueles que, como tais, são representados absolutamente a priori pela só razão e são propriamente morais, daqueles que são empíricos, e que o entendimento erige em conceitos gerais por um simples confronto das experiências; consideram-nos, ao invés, sem atentarem na diferença de suas origens, apenas segundo seu número maior ou menor (pois os encaram como sendo todos da mesma espécie) e formam assim seu conceito de obrigação. Na verdade, este conceito é tudo menos moral; mas é o único que se pode esperar de uma filosofia que, sobre a origem de todos os conceitos práticos possíveis, não decide de maneira nenhuma se se produzem a priori ou só a posteriori. Ora, propondo-me publicar, um dia, uma Metafísica dos costumes, faço-a preceder deste opúsculo que lhe serve de fundamentação. De certo não há, um rigor, outro fundamento em que da possa assentar, de não seja a Crítica de uma razão pura prática, do mesmo modo que, para para fundamentar a Metafísica, se requer a Crítica da razão pura especulativa por mim já publicada. Mas, em parte, a primeira destas Críticas não é de tão extrema necessidade como a segunda, porque em matéria moral a razão humana, mesmo entre o.


Texto completo

http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_kant_metafisica_costumes.pdf




Guardar - Antônio Cícero

GUARDAR


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. 
Em cofre não se guarda coisa alguma. 
Em cofre perde-se a coisa à vista. 
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. 
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela. 
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro 
Do que de um pássaro sem vôos. 
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema: 
Para guardá-lo: 
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: 
Guarde o que quer que guarda um poema: 
Por isso o lance do poema: 
Por guardar-se o que se quer guardar.

Antonio Cicero




quarta-feira, 10 de junho de 2020

Dois Patinhos na Lagoa


Eram férias
Eram quatro aves barulhentas
Socós suburbanas
pousadas em quartos e barracas
dois patinhos na Lagoa de Saquarema.

Cântico Negro - José Régio


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!







Samambaia

No mundo de hoje
tudo é venda
e sem se enxergar
compra-se de tudo, que não serve
Pois, servo é quem compra

Se vendo, não sou capaz de dar
se compro, sou capaz de usar
se uso, é pra gastar
até o desgosto

Só no que está vivo pode-se d(o)ar amor.

Rodrigo Diniz


terça-feira, 9 de junho de 2020

O Salto de Migliaccio

Só a esperança
leva alguém a pular
do décimo nono andar
do edifício da lembrança

Quem desiste e se mata
quer mais do que morrer
quer o fim do sofrer
quer o salto do acrobata

É decisão final, é dignidade
é um foda-se pro mundo
é ver o diabo em seu profundo
é um passo, enfrente a gravidade

Flavio Migliaccio


Acredito que o que tenha realmente me emocionado, além da própria morte e maneira em si, de como Migliacio morreu, foi o vídeo gravado pelo Lima Duarte, por conta de sua morte, a mensagem é tão forte que a menção que Lima a peça Os Fuzis da Senhora Carrar, de Bertold Brecht, me fizeram ir procurar a peça pra assistir, achei várias versões, a grande maioria delas amadoras e incompletas, mas encontrei uma completa no you tube, isso foi a mais de um ano, baixei também um PDF da peça e a li, é bem curta, e ler depois de encenada fica bem fácil.


A versão que assisti da peça segue abaixo.






Mario Quintana

"Repara como o poeta humaniza as coisas:
 dá hesitação às folhas anseios ao vento.
Talvez seja assim que Deus dá alma aos homens"

"Quem faz um poema abre uma janela
 respira, tu que esta em uma cela abafada
 esse ar que entra por ela

 Por isso é que os poemas tem ritmo
 para que possas profundamente respirar
 quem faz um poema, salva um afogado"

Mario Quintana.


"A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse e a gente nem soubesse que era o fim"


"Quem faz um poema abre uma janela
respira tu, que estas em uma cela abafada
 esse ar que entra por ela
Por isso é que os poemas têm ritmo 
 para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado."

Mario Quintana

Não Passarão - Miguel Torga

NÃO PASSARÃO
                             
Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!

Miguel Torga

Com narração de Antonio Fagundes.




Bertold Brecht

ELOGIO DO APRENDIZADO
                                               
Aprenda o mais simples!
Para aqueles
Cuja hora chegou
Nunca é tarde demais!
Aprenda o ABC; não basta, mas
Aprenda! Não desanime!
Comece! É preciso saber tudo!
Você tem que assumir o comando!

Aprenda, homem no asilo!
Aprenda, homem na prisão!
Aprenda, mulher na cozinha!
Aprenda, ancião!
Você tem que assumir o comando!
Frequente a escola, você que não tem casa!
Adquira conhecimento, você que sente frio!
Você que tem fome, agarre o livro:é uma arma.
Você tem que assumir o comando.

Não se envergonhe de perguntar, camarada!
Não se deixe convencer
Veja com seus olhos!
O que não sabe por conta própria
Não sabe.
Verifique a conta
É você que vai pagar.
Ponha o dedo sobre cada ítem
Pergunte: O que é isso?
Você tem que assumir o comando

Bertold Brecht

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Jusepe de Ribera (Espanhol 1591-1652)


Jusepe de Ribera - São Pedro Penitente - 1628/1632
The Art Institute of Chicago.



Rubem Alves

A COMPLICADA ARTE DE VER



Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão_ era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso _porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver_ eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...


Rubem Alves - 26/10/2004 - Folha de São Paulo


VAZIO

A vida precisa do vazio:
 A lagarta dorme num vazio chamado casulo até se transformar em borboleta.
 A música precisa de uma vazio, chamado silêncio para ser ouvida.
Um poema precisa do vazio da folha de papel em branco para ser escrito.
E as pessoas, para serem belas e amadas, precisam ter um vazio dentro delas.
A maioria acha o contrário; pensa que é bom ser cheio.
Essas são pessoas que se acham cheias de verdades e sabedoria e falam sem parar.
São umas chatas, quando não são autoritárias.
Bonitas são as pessoas que falam pouco e sabem escutar.
A essas pessoas é fácil amar.
Elas estão cheias de vazio.
E é no vazio da distância que vive a saudade.
Rubem Alves