quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Eu não gosto de voçê Papai Noel

 Eu não gosto de você, Papai Noel!

Também não gosto desse seu papel
de vender ilusões à burguesia.
Se os garotos humildes da cidade
soubessem do seu ódio à humildade,
jogavam pedra nessa fantasia.

Você talvez nem se recorde mais.
Cresci depressa, me tornei rapaz,
sem esquecer, no entanto, o que passou.
Fiz-lhe um bilhete, pedindo um presente
e a noite inteira eu esperei, contente.
Chegou o sol e você não chegou.

Dias depois, meu pobre pai, cansado,
trouxe um trenzinho feio, empoeirado,
que me entregou com certa excitação.
Fechou os olhos e balbuciou:
“É pra você, Papai Noel mandou”.
E se esquivou, contendo a emoção.

Alegre e inocente nesse caso,
eu pensei que meu bilhete com atraso,
chegara às suas mãos, no fim do mês.
Limpei o trem, dei corda,
ele partiu dando muitas voltas,
meu pai me sorriu e me abraçou pela última vez.

O resto eu só pude compreender quando cresci
e comecei a ver todas as coisas com realidade.
Meu pai chegou um dia e disse, a seco:
“Onde é que está aquele seu brinquedo?
Eu vou trocar por outro, na cidade”.

Dei-lhe o trenzinho, quase a soluçar
e como quem não quer abandonar
um mimo que nos deu, quem nos quer bem,
disse medroso: “O senhor vai trocar ele?
Eu não quero outro brinquedo, eu quero aquele.
E por favor, não vá levar meu trem”.

Meu pai calou-se e pelo rosto veio
descendo um pranto que, eu ainda creio,
tanto e tão santo, só Jesus chorou!
Bateu a porta com muito ruído,
mamãe gritou ele não deu ouvidos,
saiu correndo e nunca mais voltou.

Você, Papai Noel, me transformou num homem
que a infância arruinou, sem pai e sem brinquedos.
Afinal, dos seus presentes, não há um que sobre
para a riqueza do menino pobre
que sonha o ano inteiro com o Natal.

Meu pobre pai doente, mal vestido,
para não me ver assim desiludido,
comprou por qualquer preço uma ilusão,
e num gesto nobre, humano e decisivo,
foi longe pra trazer-me um lenitivo,
roubando o trem do filho do patrão.

Pensei que viajara,
no entanto depois de grande,
minha mãe, em prantos,
contou-me que fôra preso
e como réu, ninguém a absolvê-lo se atrevia.
Foi definhando, até que Deus, um dia,
entrou na cela e o libertou pro céu.

Aldemar Paiva

domingo, 26 de setembro de 2021

Ferreira Goulart

 Tik Tok me mostrou essa maravilha de poema de Ferreira Gulart, passei 2 dias, contemplando essa idéia como quem admira um quadro em um museu.


Do livro A Luta Corporal

ACIDENTE NA SALA

movo a perna esquerda
de mau jeito
e a cabeça do fêmur
atrita
no osso da bacia
sofro um tranco

e me ouço
perguntar:
aconteceu comigo
ou com meu osso?

e outra pergunta:
eu sou meu osso?
ou sou somente a mente
que a ele não se junta?

e outra:
se osso não pergunta,
quem pergunta?
alguém que não é osso
(nem carne)
em mim habita?
alguém que nunca ouço
a não ser quando
em meu corpo
um osso com outro osso atrita?

Nada melhor que o próprio autor para explicar




Outros poemas do mesmo livro.

O duplo

Foi-se formando
a meu lado
um outro
que é mais Gullar do que eu

que se apossou do que vi
do que fiz
do que era meu

e pelo país
flutua
livre da morte
e do morto

pelas ruas da cidade
vejo-o passar
com meu rosto

mas sem o peso
do corpo
que sou eu
culpado e pouco

Uma aranha

ela surgiu não sei de onde
quando abri o Dicionário de Filosofia
de José Ferrater Mora
(no verbete Descartes, René;) mi-
núscula
com suas muitas perninhas
quase invisíveis
cruzou a página 1 305 como se flutuasse
(uma esfera de ar
viva)
e foi postar-se no alto
no limite entre o texto e a margem branca
enquanto eu
fascinado
indagava:
como pode residir
insuspeitado
nestas encardidas páginas
– em minha casa, afinal de contas –
um tal ser
mínimo mas vivo
consciente de si
(e como eu
parte do século XXI)
e que agora parece observar-me
tão espantado quanto estou
com este nosso inesperado encontro?

Repouso

pouso o rosto
na mesa

que
alívio
ser apenas
tato

só o
macio
contato

o corpo
corpo
defeso
dos esplendores
da vida

Novo adendo ao poema Desordem

foi
um relâmpago um
eletrochoque
na mucosa
(sujeita a inflamações
alérgicas) mas
ali
naquela noite de abril, não:
deflorou-me as narinas
o veneno
que o jasmineiro
(disfarçado de arbusto)
expelia
como uma fêmea
emite seu aroma de urina

e assim
saí
pela noite
a recender
levando
embutido em meu corpo
um vaporoso
e novo
e alvo esqueleto
de jasmim

Perplexidades

a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto

é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo

e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado



segunda-feira, 12 de julho de 2021

Coisa

 A filosofia já se inquietou por tudo e por nada

Mas não conheço Socrates, Platão ou Aristóteles

Que tenha se debruçado sobre a essência da meiuca dos dois

Aquela que é ao mesmo O Tudo

E ao mesmo tempo O NADA

Ela é verbo, ela é objeto, ela é qualidade

Entre o material e o espirito ela reina só

Singular ou plural, só ela é capaz de fechar os espaços intransponíveis das lacunas do esquecimento.

Gênero ela tem os dois, diminutivo ou aumentativo não importa, ela é o Pelé de todas as palavras.

Agora é dar polimento e ver como a coisa fica.

A Máquina - Adriana Falcão

 Eu já havia ficado sabendo da existência de uma peça de teatro com esse nome, infelizmente eu nunca assisti a peça, que ficou muito famosa sendo encenada por atores excelentes como Vladimir Brichta, Lázaro Ramos, e Wagner Moura, passado isso, sem a minha devida atenção, procurando sobre frases famosas e de impacto na internet, me deparei com a seguinte frase.

"Seu coração disse para sua cabeça vá, e sua cabeça disse para sua coragem vou, e sua coragem respondeu vou nada, mas sua boca não ouviu e beijou"

Essa frase eu li, guardei-a em um arquivo word, dentro de uma pasta chamadas textos, dentro do meu pen drive, e isso deve fazer uns 12 anos, daí, recentemente, quando me mudei pra área de trabalho do Open Space, reencontrei esse arquivo word, e resolvi pesquisar sobre a frase que eu acreditava ser da peça, quando descubro que na verdade é um livro, e no impulso, fui e comprei, na estante virtual, por 18 reais. O livro não é muito grande, um pouco mais de 100 páginas e nem todas escritas por completo, e daí aconteceu algo que não acontecia a muito tempo, eu devorei o livro em poucas horas, e me deliciei com a forma de escrever e de contar uma bela história de amor, no interior do Nordeste, mais precisamente, na cidade de Nordestina, o impacto do livro em mim foi tão grande que tenho vontade de comprar mais exemplares, e sair por ai evangelizando as pessoas com as palavras de Adriana, aqui porém guardarei alguns trechos, como estrelas que brilham mais do que outras numa bela noite de céu limpo.


Vai ser difícil não transcrever o livro todo, já que quase tudo é excelente, porém ela já começa com uma idéia que de tão simples guarda um genialidade gigantesca.

"Lá, de onde Antônio vem é longe que só a gota. Longe que só a gota pra trás, o que é muito mais longe que só a gota do que longe que só a gota pros lados. Pois vir de longe pros lados é vir de longe no espaço, lonjura besta que qualquer bicho alado derrota. Já vir de longe pra trás é vir de longe no tempo, lonjura que pra ficar desimpossível demora."

A genialidade aqui está na associação do espaço como algo horizontal e o tempo como algo vertical, é claro, já aprendemos isso na escola com planos cartesianos por exemplo, mas se tivessem explicado com poesia, seria tão melhor.


quinta-feira, 1 de julho de 2021

Pondé

 Me diverti muito assistindo essa entrevista com o Pondé falando sobre Freud, e ele cita tantas coisas, que resolvi guardar o vídeo aqui, e ir pesquisando aos poucos.



A Última Entrevista de FREUD

Sigmund Freud (1856-1939), o judeu austríaco fundador da psicanálise, estudou medicina em Viena. Continuou a sua formação em Paris, junto a Jean-Marie Charcot, que empregava a hipnose como tratamento para a histeria. Mais adiante, Freud desenvolveria a sua teoria psicanalítica. Sustentava que a neurose era produto da sexualidade infantil. Em 1890, publicou “A Interpretação dos Sonhos’”. Em 1902, lhe foi outorgada uma cátedra especial de neuropatologia na Universidade de Viena. A partir de então, se concentrou no estudo do comportamento psicológico e psicopatológico e no papel que desempenha a sexualidade no inconsciente. Em 1938, depois da anexação da Áustria pelos nazistas (que já haviam proibido a psicanálise na Alemanha), emigrou para o Reino Unido. Morreu vítima de um câncer na mandíbula.

 “Meus 70 anos me ensinaram a aceitar a vida com alegre humildade.” Quem fala assim é o grande explorador das profundezas da alma. Não existe outro mortal que, como Freud, tenha estado tão próximo de encontrar uma explicação para o insondável mistério do comportamento humano.

Nossa conversa foi em sua residência de verão em Semmering, nos Alpes austríacos. Freud tinha a face contraída, como se estivesse sofrendo. Sua mente permanecia alerta, sua cortesia continuava impecável, mas fiquei alarmado com a pequena dificuldade que demonstrava ao falar. Tinha se submetido a uma intervenção cirúrgica devido a uma doença maligna na mandíbula superior. Desde então, leva implantado um aparelho para facilitar a articulação.

Sigmund Freud — Detesto essa mandíbula mecânica. A luta com esse mecanismo me faz desperdiçar uma energia preciosa. Mas prefiro ter uma mandíbula mecânica do que não ter nenhuma, a sobrevivência à extinção. Talvez, ao tornarem a vida impossível conforme envelhecemos, os deuses estejam mostrando compaixão. Afinal, a morte nos parece menos intolerante do que as múltiplas cargas que suportamos. Por que deveria esperar um tratamento especial? A velhice chega para todos. Não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, vivi 70 anos. Sempre tive o suficiente para comer. Desfrutei de muitas coisas: da camaradagem de minha mulher, de meus filhos, do pôr do sol. De vez em quando tenho a satisfação de apertar uma mão amiga. Em algumas ocasiões encontrei seres humanos que quase chegaram a me compreender. Que mais se pode pedir?

George Sylvester Viereck — Seu trabalho influiu na literatura de todos os países. O homem vê a si próprio e contempla a vida com outros olhos graças ao senhor. E, por ocasião do seu setuagésimo aniversário, o mundo se uniu para prestar-lhe uma homenagem. Exceto a sua própria universidade.

Sigmund Freud — Se a Universidade de Viena me tivesse oferecido seu reconhecimento, somente teria me envergonhado. Não existe razão alguma pela qual devam reconhecimento a mim ou à minha doutrina só porque faço 70 anos. Não dou importância desmedida aos números. A fama nos chega depois da morte e, francamente, o que ocorrer depois da minha não me preocupa. Não desejo a glória póstuma.

George Sylvester Viereck — Para o senhor não significa nada que o seu nome sobreviva?

Sigmund Freud — Nada em absoluto. O futuro dos meus filhos me interessa mais. Espero que a vida deles não seja tão dura. Eu não posso torná-la mais fácil. A guerra (Primeira Guerra Mundial) praticamente acabou com a minha modesta fortuna, a poupança de toda uma vida. Por sorte, minha velhice não é uma carga muito pesada. Meu trabalho ainda me dá prazer. [Passeávamos pelo íngreme jardim de sua casa. Freud acariciou com ternura um arbusto]. Interessa-me muito mais esta planta do que qualquer coisa que possa ocorrer quando eu esteja morto.

George Sylvester Viereck — Não deseja a imortalidade?

Sigmund Freud — Sinceramente, não. Quando alguém percebe o egoísmo por trás de toda conduta humana, não sente o menor desejo de renascer. Me satisfaz saber que a eterna moléstia de viver chega finalmente ao fim. Nossa vida é composta, necessariamente, de uma série de compromissos. É uma luta sem fim entre o ego e o seu entorno. O desejo de prolongar a vida além do natural me parece absurdo. Não há razão para desejarmos viver mais tempo, mas são muitos os motivos para que queiramos fazê-lo com a menor quantidade possível de incômodos. Eu sou razoavelmente feliz porque agradeço a ausência de dor e desfruto dos pequenos prazeres da vida, da presença de meus filhos e das minhas flores. É possível que a própria morte não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Do mesmo modo que em nosso interior convivem simultaneamente o ódio e o amor por uma pessoa, a vida combina o desejo de sobrevivência com um ambivalente desejo de aniquilação. Como um elástico que tem a tendência de recuperar a sua forma original, a matéria viva, consciente ou inconscientemente, deseja conseguir de novo a inércia total e absoluta da existência inorgânica. O desejo de morte e o de vida convivem em nosso interior. A morte é o par natural do amor. Juntos, governam o mundo. Na sua origem a psicanálise assumia que o amor era o mais importante. Atualmente, sabemos que a morte é igualmente importante. Biologicamente, cada ser vivo, por mais forte que arda nele o fogo da vida, tende ao nirvana, deseja que a febre chamada vida chegue ao seu fim. Podemos jogar com a ideia de que a morte nos alcança porque a desejamos. Talvez pudéssemos vencer a morte, se não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós. Assim, poderíamos dizer que toda morte é um suicídio encoberto.

George Sylvester Viereck — Em que o senhor está trabalhando?

Sigmund Freud — Escrevo uma defesa da psicanálise secular. Pretendem tornar ilegal a prática por pessoas que não sejam médicos em exercício. A história, essa velha plagiária, se repete sempre que há uma descoberta. Inicialmente, os doutores se opõem impetuosamente a toda verdade nova. Imediatamente depois, tentam monopolizá-la.

George Sylvester Viereck — O senhor já se analisou?

Sigmund Freud — Obviamente. O psicanalista deve analisar-se constantemente. Aumenta nossa capacidade de analisar os outros. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os demais depositam nele os seus pecados.

George Sylvester Viereck — Sempre pensei que a psicanálise necessariamente induzisse naqueles que a praticam a caridade cristã. Não há nada na existência humana que a psicanálise não nos ajude a compreender.

Sigmund Freud — Compreender tudo não é perdoar tudo. A psicanálise ensina que devemos evitar. Tolerar o mal não é em absoluto um corolário do conhecimento. Meu idioma é o alemão. Minha cultura e minhas conquistas são alemãs. Intelectualmente, me considerei alemão até perceber que os preconceitos antissemitas iam aumentando na Alemanha e na Áustria. A partir de então, deixei de considerar-me alemão. Prefiro definir-me como judeu.

Senti-me decepcionado. Ao meu ver, o espírito de Freud devia voar mais alto, acima de qualquer preconceito racial, e permanecer à margem do rancor pessoal. Não obstante, sua indignação, sua justa cólera, o faziam humanamente muito mais atraente.

George Sylvester Viereck — Agrada-me descobrir, professor, que o senhor também tem seus complexos.

Sigmund Freud — Nossos complexos são a causa de nossa fraqueza; mas também, constantemente, são a nossa fortaleza.

George Sylvester Viereck — Algumas vezes me pergunto se não seríamos mais felizes sabendo menos dos processos que dão forma aos nossos pensamentos e emoções.

Sigmund Freud — A psicanálise despoja a vida de seus encantos ao vincular cada sentimento aos complexos que a originam. Descobrir que alojamos no coração um selvagem, um criminoso, uma besta, não nos faz mais felizes.

Sigmund Freud — O que você tem contra as bestas?  Eu prefiro muito mais a companhia dos animais. São muito mais simples. Não têm uma personalidade dividida, não sofrem a desintegração do ego que surge da tentativa do homem de adaptar-se à regras da civilização. O selvagem, como a besta, é cruel, mas está livre da mesquinharia própria do ser civilizado. A mesquinharia é a maneira que o homem tem para vingar-se da sociedade pelas restrições que esta lhe impõe. É o sentimento vingativo que anima o reformista e o fofoqueiro. Um selvagem pode nos cortar a cabeça, nos devorar, nos torturar, mas nos poupará das pequenas e contínuas ferroadas que, às vezes, fazem que a vida em uma comunidade civilizada seja quase intolerável. Os hábitos e idiossincrasias mais desagradáveis do homem, sua falsidade, sua covardia, sua falta de respeito, são produtos de uma adaptação incompleta a uma civilização complexa. São o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais satisfatórias resultam as simples e intensas emoções de um cachorro que agita o rabo quando está contente ou late para manifestar irritação!

George Sylvester Viereck — Talvez o senhor seja o responsável, ao menos em parte, pelas complicações da civilização moderna. Antes da invenção da psicanálise, não sabíamos que nossa personalidade está sob o domínio de uma beligerante hoste de complexos. A psicanálise converteu a vida em um complicado quebra-cabeça.

Sigmund Freud — Em absoluto. A psicanálise simplifica a vida. Depois de analisarmos, conseguimos uma nova síntese. A psicanálise reorganiza o labirinto de impulsos dispersos e tenta encaixá-los na meada a que pertencem. Ou, para mudar de metáfora, proporciona o fio que permite ao homem sair do labirinto de seu próprio inconsciente.

George Sylvester Viereck — Tenho a impressão de que a estrutura científica que o senhor construiu é altamente elaborada. Seus elementos fixos (a teoria da ‘substituição’, da ‘sexualidade infantil’, a ‘simbologia dos sonhos’ etc.) parecem inamovíveis.

Sigmund Freud — Isso é só o começo. Não sou mais que um principiante. Tive êxito no que se refere a desenterrar monumentos submersos no substrato da mente. Mas onde encontrei uns poucos templos, outros podem descobrir um continente.

George Sylvester Viereck — Continua pondo o máximo de ênfase no sexo?

Sigmund Freud — Posso ter cometido muitos erros, mas estou completamente seguro de que não me equivoquei ao considerar predominante o instinto sexual. Dado que se trata de um instinto tão poderoso, choca-se com especial frequência com as convenções e salvaguardas da civilização. Como mecanismo de autodefesa, a humanidade tenta negar a sua suprema importância. Analise qualquer emoção humana, não importa o quão distante pareça estar da esfera sexual, e seguramente descobrirá em algum lado o impulso primário, ao qual a própria vida deve a sua perpetuação. Não me faça parecer um pessimista. Não desprezo o mundo. Mostrar desprezo ao mundo é só uma forma a mais de adulá-lo para obter reconhecimento. Não, não sou pessimista, não enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores. E não me sinto infeliz. Ao menos, não mais do que os outros.

*Entrevista feita por George Sylvester Vierek, em 1930, e publicada no livro “Glimpses of the Great”. No Brasil, a entrevista foi publicada originalmente no livro “A Arte da Entrevista: Uma Antologia de 1823 aos Nossos Dias”, organizado por Fábio Altman (Scritta 1995). Esta edição, republicada pela Revista Bula, foi publicada no jornal “Folha de S. Paulo”, em 1998, com tradução de Claudia Rossi.

Paulo Leminsk

Se
 Nem
 For
 Terra
 Se
 Trans
 For
 Mar                                                                                                                                   Paulo Leminsk
Confira
Tudo que respira
Conspira.

Tudo é vago e muito vário
Meu destino não tem siso
O que eu quero não tem preço
Ter um preço é necessário
E nada disso é preciso

Isso de querer ser
Exatamente aquilo que a gente é
Ainda vai nos levar
Além.


"Do amor eu conheço os sintomas e os hematomas."


A LUA NO CINEMA

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava para ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!



ADMINIMISTÉRIO

Quando o mistério chegar,

já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?


AVISO AOS NAUFRÁGOS

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?